domingo, 10 de outubro de 2010

E por isso hoje é Círio outra vez!


Hoje tive uma das experiências mais marcantes de minha vida, fui Guarda de Nossa Senhora de Nazaré, tomei conta, com tantos outros homens como eu, da Retaguarda da Berlinda. Emoção sem nada igual, no próximo post eu prometo contar um pouco mais sobre essa experiência, hoje, pra marcar essa data especial, vou postar um texto sobre o Círio que recebi por email. Um feliz e abençoado Círio de Nazaré a todos!

Círio Cabano
por André Costa Nunes

Há três anos, um amigo, creio, como desafio, ou mesmo, de pura sacanagem pediu-me que escrevesse um artigo sobre a grande festa dos peraenses, o Cirio de Nazaré para a Revista Veja, Edicão Especial. Claro que ele sabia das minhas convicções. O que ele não sabia é que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

Escrevi com fé. Com o coração de paraense do tamanho da Amazônia. Paraense de hoje, de ontem, de sempre.

Cabano.

Em tempo: Na Veja mudaram o título para “O Estado de Nossa Senhora de Nazaré”. Sabe como é editor, mas até que eu gostei.




CÍRIO CABANO


Paraense, ateu. Filosoficamente, materialista. Devoto de Nossa Senhora de Nazaré. Este último atributo, no mês de outubro, transcende os demais. É inerente ao ser paraense.

Durante algum tempo, no auge do obscurantismo ideológico da juventude, ainda tentei renegar, mas romântico inveterado, há muito deixei de remar contra a maré. Mergulhei de cabeça no paraensismo, o que não existe sem açaí, tacacá, Ver-o-Peso, marés, rios e ilhas. Canoas e torço nu. Sem camisa. Sem a devoção à Virgem de Nazaré.

E isso tudo, à imagem do próprio Rio Amazonas, como em um caudal, desagua em Belém, no segundo domingo de outubro. A colossal procissão do Círio, com milhares, fala-se até em milhões de romeiros, diz-que, começa na catedral da Sé e termina cinco ou seis quilômetros depois na Basílica de Nazaré, mas um olhar atento vai além.

Vê que a romaria começa em cada furo, rio, igarapé, ilha ou beiradão.

Canoas, ubás, caxiris, barcos, a motor, vela ou remo. Começa nas palafitas e barrancos. Nos quintais das cidades, no porco cevado, no patarrão, no ralar da mandioca, no tipiti, e no moer da folha de maniva. Matéria prima para o almoço do Círio. Maniçoba e pato no tucupi. Farto e generoso. Para a família, para os amigos, e quem mais chegar.

Começa no vestido de chita com babados, decote comportado e comprimento a baixo dos joelhos. Calça e camisa de manga comprida, novas, as únicas mudas de roupa compradas no ano, mas estreadas no Dia da Festa. Sapatos, sandálias, baixas ou de salto, tênis?

Nenhum. Acompanhar o Círio de Nazaré se vai descalço. Naturalmente.

Começa com banho-de-cheiro. Vinde-cá, priprioca, patichouli, orisa, pau-cheiroso, chama, pau-rosa, catinga-de-mulata. E se vem de todos os cantos do Estado Pará que em outubro se transmuda para além das fronteiras geopolíticas. Invade o Maranhão, o Amazonas, o Amapá. É como se fosse o Estado de Nossa Senhora de Nazaré. Esse é o núcleo central tangido pelas águas, senhora de todos os destinos.

Essa é a procissão cabana de antes da estrada, do asfalto, do ônibus, do avião, do arranha-céu, do apartamento, do estacionamento proibido.

Essa nova tribo do fast food também é bem-vinda. Por adesão, é claro, afinal, no manto da Virgem e no coração cabano há sempre espaço de sobra. Apenas há que aderir ao espírito secular do Círio. Ficar mundiado pelo bom e pelo bem. Sentir-se igual. Caminhar descalço.

É por tudo isso, pelo peso dessa enorme bagagem da cultura paraense, que, todos os anos, quando passa a berlinda da Santa, este velho comunista se emociona e chora.